Embora tenha passado parte da minha infância a olhar para a janela e a tentar enfeitiçar os céus para fazerem aparecer chuva e relâmpagos e outras tais manifestações que provassem que eu de facto tinha poderes sobrenaturais, que tenha passado todos os aniversários a rezar que não chovesse - e, milagre, nunca choveu, embora faça anos em pleno Inverno, e que até tenha pedido - sem sucesso - para que houvesse tempestade em muitas aulas de Educação Física; não, esta chuva e ventos de hoje e da próxima semana não são minha culpa, que eu estava aqui muito bem a usar t-shirts, calças de ganga e sandálias todos os dias.
Esta vou ser eu amanhã à espera do autocarro.
O Photoshop estava demasiado lento e considerando que a minha paciência para lentidão e ruído da ventoinha do portátil diminui significativamente com o calor, abandonei os apontamentos de microeconomia ali ao canto fora do meu campo visual, peguei em revistas e tesouras e decidi fazer colagens com a minha irmã.
Mais uns tempos e meto-a também a dar pontapés na bola e a conduzir no volante da playstation, para não ser como a desajeitada da irmã.
Um destes dias, no comboio sentei-me no lugar ao lado de um homem já com os seus setenta ou oitenta anos que olhava para um qualquer jornal nas suas mãos.
A minha aventura como utilizadora frequente dos transportes públicos tem pouco mais de um ano, mas entretanto já aprendi que a) a fila na paragem começa junto da placa com o nº do autocarro, b) há gente que leva muito a sério o seu lugar na fila e que é capaz de passar uma viagem inteira a discutir por isso, c) é díficil manter o equilíbrio no metro sem me baloiçar pelo ferro, d) há sempre alguém que faz uma avaliação não muito dissimulada do que estamos a vestir ou a calçar e finalmente, e) sempre que alguém abre um jornal, uma ou duas cabeças inclinam-se discretamente - ou nem tanto - para espreitar.
"Em Roma, sê romano", portanto, o meu olhar intercalava entre o mar no final de tarde e as notícias que o senhor ia virando com rapidez. Cansei-me de acompanhar o ritmo de leitura e pouco depois já só tinha olhos para o mar sereno, até notar que a minha companhia de viagem tinha parado de passar páginas. Espreitei de novo. Colocara os óculos, olhava com atenção para a secção de obituário e lia em voz baixa os nomes, como se os procurasse na memória.
Voltei os olhos para a janela e pensei se um dia serei eu a ocupar aquele lugar e a percorrer com o dedo nomes na página de um jornal (será que ainda vão existir jornais em papel?), reconhecendo nomes de amigos que nunca mais vi. Será que me vou lembrar dos seus nomes? Será que vou sentir alguma coisa quando os souber idos, mais do que saudade de outros tempos? Será que ainda vou ver o mar da minha janela?
Entretanto já tinha escurecido lá fora, o jornal fora fechado e acabava de chegar ao meu destino.
Isto foi o que aconteceu este fim-de-semana. Os objectivos pintar o cabelo de preto e comprar um ferro de alisar estão cumpridos! :)