Criminosos e vidros
Há bocado, enquanto limpava o espelho da casa de banho lembrei-me de um episódio que aconteceu há cerca de um ano atrás.
Tinha ido renovar o bilhete de identidade e esperava a minha vez numa sala com vidros para o exterior. Depois de me sentar reparei numa mancha cor-de-laranja no exterior. Eram homens com macacões cor-de-laranja que se aproximaram dos vidros para os limpar. Olhei os uniformes e deduzi: "criminosos". Talvez limpar vidros fosse algum tipo de trabalho comunitário que a prisão os obrigasse a prestar.
Um deles aproximara-se do vidro atrás de mim e com o seu equipamento limpava com uma precisão notável. Cá dentro ouviam-se comentários: "mas que jeito!", "que perícia".
Eu observava atentamente enquanto o homem do uniforme laranja girava o rolo limpa-vidros que fazia deslizar sobre a superfície primeiro para cima, depois para o lado, para baixo, depois para o outro lado e para cima de novo. De cada vez, terminava com um gesto profissional e aí eu percebia-lhe um sorriso, talvez cínico de vingança.
Na minha mente imaginava-o a pensar em como se sentia injustiçado por ter ido parar à cadeia, em como queria vingança. Talvez tivesse sido apanhado a partir o vidro de uma loja numa sequência de assaltos e agora, limpar vidros era sem dúvida uma ironia do destino. Talvez ponderasse destruir o vidro atrás de mim, tirar a pistola do bolso do uniforme e acabar já comigo, aquela rapariga insolente que o observava. Encolhi-me perante tal pensamento.
E o homem continuava a limpar, alheio aos meus pensamentos. E continuava como se de um jogo de computador se tratasse. "Destruir a sujidade. Virar o rolo para a direita. Agora para a esquerda. Pronto. Fim do nível 3."
Virei-me para a minha mãe: "nem sei porque é que ele foi cometer um crime... tem tanto jeito." A mãe pareceu-me desorientada. Falei-lhe na perícia daquele desconhecido, no serviço comunitário da prisão e no sorriso vingativo dele ao terminar cada etapa de limpeza.
- Bárbara, aquele uniforme não é da prisão. É da empresa de limpezas. - respondeu a minha mãe, muito simplesmente. Justificou-me apontando para a carrinha estacionada lá fora com o mesmo logotipo alusivo a limpezas que se encontrava nas costas dos uniformes cor-de-laranja daqueles sujeitos.
Pois bem. É que hoje depois de limpar na perfeição o espelho da casa de banho lembrei-me que noutra encarnação devo ter sido criminosa.